Mad’in China










Quarta-feira ,17 Maio de 2013 em Setúbal
(40.003,2 quilómetros de diferenças, não só horárias)
O perímetro da Terra..
Viajar é sentir as diferenças entre culturas e reconhecer os valores de cada uma, por muito díspares que sejam; é sentir a enorme riqueza que a diversidade cultural e étnica dá à humanidade. Viajar é pairar e vaguear no meio de outras culturas e gentes, evitando locais onde o turista ofensivamente opulento e “caridoso” ensinou a mendicidade às crianças, promoveu o furto nos adolescentes e corrompeu a ingenuidade dos adultos.(Alberto Korda- fotógrafo)
Apenas sei que Passarei por lugares onde ainda não respirei,passarei por locais onde ainda não passei nem toquei, onde ainda não senti na pele o calor e o pó e os pulmões a arder,Nas multidões eu estrangeiro serei mais um só, num lugar entre vários, onde poucos ocidentais passaram devagar, eu respirarei dessa liberdade que há tão pouco, num mundo tão pequeno quiçá hostil ou ameno, mas do qual nada sei…Apenas sei que passarei por locais que serão a minha cabeceira e cama e por algumas semanas serão eles pra mim o bom e o avesso do travesseiro…
Será a primeira vez que irei percorrer um tão grande número de quilómetros e em tão poucos dias, pelas minhas contas 4.500 em trinta dias, quase a distância de lisboa a Moscovo num mês, ou seja, terei de percorrer 150 quilómetros por dia sem descanso durante esse espaço de tempo.
Comecei por pedir a aplicação do visto para a China no passaporte (disseram-me na agencia de viagens onde comprei o bilhete de avião que não seria necessário visto para o Quirguistão) demorado e burocrático foi este visto, fazendo-me sentir como seria difícil o percurso num dos maiores países do mundo.
As próximas fases serão o fazer listas o mais concisas possível dos objectos a transportar, arrumá-los e ir retirando tudo, mas mesmo tudo quanto não for absolutamente necessário a sobrevivência diária, a roupa, à parte os calções almofadados de ciclismo, será comprada nos mercados locais para me parecer o mais possível com os habitantes de cada região ou cantão (cada um destes do tamanho de países como a França, a Espanha ou a Polónia)
Lembro-me, apesar de terem passado tantos anos, de uma série de televisão que me iludia os olhos e aquecia como a areia das dunas, a minha alma e, apesar de ainda ser a preto e branco lembro-me dela como se fosse já a cores.
Ah …e aquela música de Kitaro ,emocionava-me pela magia do som dos guizos e dos cascos dos camelos, (chamava-se “The silk Road”)
Kitaro era o musico Japonês que compunha a banda sonora da serie e teve aquela musica a faculdade de um despertar para o oriente e para a mítica rota da seda, algo que era, nesse tempo, tão longínquo, como ainda o é hoje.
As cidades chinesas e todas as outras como Samarkand ,Antioch ou Aleppo, ao longo desta rota milenar modificaram-se mas espero ver ainda um ultimo vestígio das imagens com que aprendi a conviver faz mais de 30 anos, na serie que esperava fielmente ver no minúsculo ecrã de televisão, um aparelho ligado a uma bateria pois não possuíamos electricidade em casa.
Isso era coisa de meninos ricos e a minha casa era no campo, quase sem um caminhos nem agua canalizada ou casa de banho como hoje talvez dificilmente consigam imaginar.
Lembro-me da inveja que tinha dos outros meninos da escola, falavam de ouvir música num gira-discos e eu nem sabia o que era tal coisa.
Talvez por isso sinta mais afinidade com estas civilizações do que com o ocidente dito civilizado e homologado.
Talvez por isso reconheça estes povos como meus familiares e sinta maior segurança no meio destes, que numa mega-metrópole de 10 ou 20 milhões de almas sem os sonhos ligados aos meus e entre eles próprios.
Xi’an / Bishkek 2013 (Mad’in China)
Quando entrei no aeroporto de Lisboa, no dia 30 de Maio de 2013, numa meia tarde quente, sentia-me inseguro, transportava comigo um enorme embrulho contendo uma bicicleta meio desmontada e o que eu considerava ter de coragem, a metade bastante para tentar atravessar a grande China pedalando.
Revelou ser uma tarefa para a qual ainda não me encontrava preparado, a monotonia infinita do planalto tibetano e a paz que não levava comigo no pequeno alforge, revelaram-se-me avassaladoras.
Perguntou um polícia quando entrei na área internacional do aeródromo,
– qual é o seu destino?
respondi com vigor exagerado
– para a China!
respondeu ele que para lá não iria de forma alguma
retorqui eu que sim, era sem dúvida alguma o meu destino,
respondeu ele de novo,
– não há voos entre Lisboa e Pequim
Disse-lhe finalmente que faria escala em Istanbul e deixou-me passar com um ar astucioso, peculiar em todas as autoridades de todos os países.
– // –
Ao aterrar em Xi’an de madrugada, não supunha o redemoinho de acontecimentos e contrariedades que este imenso pais me reservava, aguardava-me o táxi que me haveria de levar ao “youth hostel les 7 sages”.
Chovia e as ruas pareciam encantadoramente Asiáticas e fantasmagóricas junto daquele paredão escuro.
Xi’an parecia toda uma cidadela medieval sequestrada por um colosso demasiado ocidentalizado de betão, alcatrão e ferro que era o continente Asiático; mesmo o hotel, aproveitado das antigas cavalariças do corpo de elite das tropas do imperador Xin, fazia recuar o tempo no interior dos muros da cidade, fora a China mostrava as verdadeiras cores, invicta e esventrada dos seus gloriosos e ancestrais ídolos e sendo preenchida com a pestilência de um fumo horrível.
Pelo menos aqui falava-se inglês, se bem que tivesse que me adaptar ao sotaque. Reconstruí a bicicleta no quarto, aos pés da cama, tomei um banho quente e mais parecia um zombie ou uma máquina controlada por piloto automático que repousava das 20 horas de jornada. naquele colchão rente ao chão e nos únicos lençóis brancos de toda a viagem, nem os sonhos adivinhavam o meu futuro na China.
Sete da madrugada e pergunto na receção onde posso adquirir um mapa de estradas Chinesas, uma imprescindível ferramenta, senão a mais importante para continuar para Ocidente na direção do Deserto do Taklamakan e do Quirguistão.
Apontou-me o mercado ao lado da estação não muito longe do albergue, para onde me dirigi; aqui foi a primeira noção da Ásia total que me envolveu nesta viagem, as ruas das prostitutas importunando possíveis clientes, a fealdade dos becos pejados de lixo, a pobreza extrema estampada nas feições mas na alma a nobreza própria de quem protagonizou a Historia da humanidade, respondiam sempre no mesmo tom e repetiam as minhas palavras quando dizia que queria comprar um “Map of China”, continuei durante cerca de uma hora questionando os transeuntes que me pareciam saber algum inglês mas ingloriamente, nem um único termo compreendiam nem um gesto, nada…
Dado Xi’An ser uma cidade construída dentro e em volta de uma muralha quadrangular nada mais sensato me ocorreu senão seguir junto ao muro, para Oeste, talvez isso me levasse de uma forma mágica, ao meu destino próximo, a cidade de Lanzhou, pois nem o nome dessa ou de outras cidades eu era capaz de pronunciar em Chinês.
Senti-me completamente perdido no meio do “smog” e com uma vontade de voltar, de não estar ali, a alimentação futura não menos que a fome atormentava-me, o mito ocidental, que os chineses comem todo o tipo de insectos e animais deixava-me aterrorizado tanto que durante este primeiro dia decidi não comer nada para me habituar a ideia de me alimentar d’alguma coisa.
Foi agradável a visão de postal dos campos cultivados, das árvores beijando a estrada, dos praticantes de tai-chi nos jardins, ao som de diferentes instrumentos e finalmente na rota que me levaria ao Ocidente, a “Rota da Seda”
Havia pedalado pouco mais de cem quilómetros sem me dar conta do “jet-leg” e da fome, pareciam mais pesadas as pernas e a bicicleta, as pequenas subidas afiguravam-se a montanhas íngremes e a mochila nas costas pesava como chumbo.
Um grupo de camiões, num dos muitos locais artesanais de lavagem, fez-me pensar que talvez fosse bom tentar provar do acolhimento deste povo, ao principio, riram-se dos meus gestos quando sugeri colocar a bicicleta dentro da galera alta e vermelha de transporte de carvão.
Fiquei contente quando o condutor me levou pela estrada, em ziguezague, sempre tentando fazer conversa, oferecendo-me tabaco, comida ,bebida e o telemóvel onde a esposa ou a filha perguntavam com umas tímidas palavras em inglês, para onde ia e o que estava fazendo na China, inclusivamente parou junto das bilheteiras do exercito de Terracota do imperador “Xin” para que o traduzissem questionando para onde ia eu, ficou com um ar de puro espanto quando lhes anunciei a pretensão de atravessar a China.
Mais tarde durante a viagem com cerca de 80 /100 km, pelas minhas contas, mostrei a foto de família que trazia comigo e tive dificuldade em fazê-lo entender que não era para oferecer, mas recordação da família que transportava comigo quando viajava.
Como que era guardado pelos colegas, cada um que passava acenava-lhe e perguntava algo que eu entendia como sendo ”pra onde levas esse branco ? ” ou “que fazes com ele aí dentro ? ”
Algumas dezenas de quilómetros depois de apeado e agradecer ao agradável motorista do camião, aconteceu o primeiro furo …
Não tardou em aparecer um jovem com cerca de 20 anos, com roupas de ciclismo, parecia um normalíssimo ocidental em fim de semana , montado numa bicicleta de montanha nova,
entendi que ia na direção de Lanzhou, transportou a câmara de ar até uma “oficina” improvisada, ali perto, junto ao passeio, consistia numa bacia com agua, alguns remendos e uma bomba de ar manual, apesar da minha insistência este recém chegado amigo não me deixou pagar o arranjo, senti-me aliviado por isso, tinha acabado de chegar a este país (diferente de muitos outros) e ainda não confiava na honestidade que comprovaria mais tarde e me entregaria de alma e coração a estes maravilhosos povos da China.
Não nos separámos, durante as 48 horas seguintes, nem para respirar. Sufocava-me e penso que também ele sentia isso, pela azáfama que demonstrava em procurar alguém que falasse inglês, nas escolas básicas onde não obtínhamos grande ajuda, nem sequer por parte dos professores, com um inglês muito primário, apenas nas universidades conseguia manter alguma conversação com os docentes, que manifestavam uma curiosidade enorme pelo ocidente e pela minha viagem, mas apesar disso, nunca consegui compreender o meu jovem amigo, acerca do que ele desejaria comunicar-me, pensei até que não me queria como companheiro de viagem mas, quando eu me afastava propositadamente e também porque ele pedalava devagar, este pedia-me para abrandar, de forma que fui afrouxando a minha vontade de fazer muitos quilómetros e as horas passavam-se sem que diminuísse a distancia à cidade mais próxima.
Pernoitei no minúsculo “bivouac” azul, (também o meu amigo chinês transportava uma exígua tenda) no meio de fenos empilhados, numa aldeia antiga e depois de termos solicitado aos locais para descansar.
Foi uma festa para os miúdos, não estavam habituados a ver estrangeiros e seguiam todos os meus gestos sem incomodarem, estava habituado noutras paragens a ser atacado literalmente por enxames de crianças, pilhado até com a indulgência dos familiares, nada disso se passava na pacatez desta China simples e rural.
No dia seguinte, muito cedo detivemo-nos numa pequena vila, apenas com uma rua bastante poeirenta, serviam-se refeições sob frondosas árvores, fui obsequiado com um pequeno almoço, servido a preceito num saco de plástico pousado uma málaga jamais lavada, soube bem estar sentado em plena rua sorvendo, como é habito nestas paragens, aquela sopa picante, adivinhava-se o sabor pela cor avermelhada e objetos desconhecidos, repugnantes pairando no caldo, mas foi aconchegante, tinha fome e fosse qual fosse a refeição, era bem vinda.
Adivinhavam-se as feições tibetanas em alguns peregrinos à medida que me ia aproximando do elevado “plateau”, pareciam-se com os caminhantes de Santiago de Compostela que conhecera noutros tempos, numa geografia de rostos distintos.
Era noite quando chegámos à descomunal cidade de Lanhzou e de novo à poluição, o caos no trânsito exclusivamente automóvel, as ruas apinhadas de gente que me olhavam como se fosse eu um extraterreno saído dalgum “OVNI” em talhe de bicicleta.
Esta, como todas as cidades Chinesas que conheci, parecia cintilar de tanta luz e néon vista de longe, reparei nos rostos franzinos dos camponeses encostados aos vidros embaciados dos autocarros, boquiabertos com tanta ostentação, diz-se por aqui “para inglês ver”, neste caso será mais para uso doméstico, porque nas ruas detrás, no mais central lugar da cidade mas escondidas aos forasteiros, eram o mesmo amontoado de escombros, lixo, falta de esgotos e ruas sem asfalto, cada morador tem de usar lanterna para não cair numa vala cheia de ratos, num buraco onde é queimado diariamente o lixo ou num vazadouro de esgoto caseiro.
Exibiu-me aos estranhos amigos “teenegers” e a uma irmã que felizmente falava bem inglês, trabalhava na versão Chinesa do Kentucky Fried Chicken, eu sabia previamente não haver esta marca de franchising na China, mas a imitação era perfeita, além disso eu detestava frango, 
Disse-me que não viviam juntos, depressa compreendi porquê, os pais eram separados e o rapaz ficou no “dark side of the moon”, com um pai sempre alcoolizado, numa casa de duas divisões e extremamente suja, discutiram durante algum tempo,ela tentava, penso eu, convencer o irmão a procurar um hotel para mim em lugar de me levar para casa dela,
A resposta foi arrogante no primeiro hotel onde entrou pedindo informações – não pode de forma alguma, ficar em hotéis para Chineses, foi então procurar um hotel exclusivamente para estrangeiros, saiu impressionada e com as mãos na cabeça, o preço por cada noite era escandaloso, 350 yuan’s,( 35 Euros) quase o terço do salário de um mês de trabalho na China.
Resolveram que ficaria na casa do pai dele, ofereceram-me jantar numa esplanada em plena rua, espetadas de carne de cão no churrasco, acompanhadas de cerveja, muita cerveja, sentia-me vulnerável e ainda mais bebendo assim tanto, depois de um dia inteiro em jejum, mas confiei neste bando de jovens que anunciavam nos tradutores dos telemóveis como sendo Hackers (perguntei-me se entenderiam o significado do termo)
Viviam sozinhos, em pequenas lojas de 4/5 metros quadrados apenas com um computador, um LCD na parede, caixas usadas de comida pré-cozinhada, amontoadas a um canto, despedimo-nos tarde e fui para a casa do meu anfitrião.
Ainda tentei lutar contra o sono, estava sozinho e indefeso numa casa anónima, numa incógnita cidade do interior da China, onde poderia desaparecer sem deixar rasto.
O rapaz dormiu no sofá e cedeu-me uma cama coberta de uma esteira em bambu, muito mais tarde é que descobri que a cama tinha duas utilizações, era usada como mesa quando vazia dos moradores noturnos, sendo assim, sem retirar a esteira, eu dormira em cima da mesa.
Acordei cedo e foi como um bálsamo a partida de novo e sempre para Ocidente, desta vez em comboio como me foi “imposto” pela irmã do jovem que me cedeu a cama para dormir, fui em direcção a Xining, capital da província de Quighai e terras dos grandes lagos sagrados e salgados.
Fez-me esta prometer que não iria de bicicleta subir aquelas montanhas tão íngremes que se avistavam do cento da cidade, dizia, apontando os penedos escuros, ao que eu concordei, faltavam, (pensava eu,) muitos quilómetros e nada melhor que o conforto de um comboio.
Os jovens são imensos na China e o vagão estava apinhado deles, viciados em telemóveis, ainda mais que no ocidente, d’entre estes salientava-se especialmente um pelo entusiasmo radiante e a facilidade com que chamava a atenção das belas raparigas, de quase todas elas, pensei que se conheciam mas mais tarde descobri que eram apenas companhia de ocasião.
Quando saí do comboio veio correndo ao meu encontro e coloca-me um pin com uma ave pernalta desenhada dizendo ser da “sua” organização, que eu soubesse todas as “organizações” na China são governamentais, mas não voltei a pensar no caso, não fosse voltar a encontra-lo por mais duas vezes nos cerca de 2.500 quilómetros que palmilhei deste país, coincidências? …
A vila de Daotanghe situa-se numa encruzilhada de duas estradas sempre com a tradicional e monumental praça ornamentada com alguma obra de arte arrogante, regimental e naturalmente desprovida de sentimentos.
As vendedoras na rua puxavam-me os cabelos das pernas quando passava, apeado da bicicleta, junto ao lago Quinghai, uma jovem vem ter comigo e passa-me a mão pela cara para sentir a minha barba eriçada, algo que não estavam habituados a ver ou sentir, nem eu a ser assediado desta forma por quem recusava um simples beijo de despedida quando eu por vezes tentava ser simpático com o sexo oposto.
Nessa noite fico num hotel mas inutilmente procuro pelo chuveiro ou o banheiro de que tanto precisava, o quarto tinha apenas o tamanho do minicolchão e do meu corpo semiencolhido , na casa de banho pública havia uma pirâmide fecal petrificada e nauseabunda sob o respetivo buraco, nas traseiras da aldeia onde toda a população fazia as necessidades quase a céu aberto.
Se havia ascendido por uma estrada interminável desenhava-se para os dias seguintes o pior cenário possível, descobri tarde demais que me tinha enganado no itinerário por não ter comprado mapa, em vez de usar o percurso da direita (Oeste) em direcção ao lago Quinghai, atravessei algumas centenas de Quilómetros de montanhas para Sul (para Gonghe), mais outra poeirenta e desagradável cidade.
Continuei por dias consecutivos, dormindo em “bivoac” e pedalando por subidas abruptas em altitudes de perto de 4.000 metros, agarrado á traseira de camiões, carregados de asfalto e pedra, para a construção das imponentes vias de acesso vitais a China, talvez nem tanto ao povo “Uigur”, maioritário ainda na província de Xinjiang (por poucos anos) auto-estradas sem tráfego significativo, a não ser tanques de guerra, carros antimotim e policia, muitos polícias…
A fresquidão das madrugadas e os espaços sem termo do altiplano eram um calmante para a alma, embora de resto, os dias quentíssimos, tendo como única sombra a que eu próprio criava, os sons do tráfego, as omnipresentes buzinadelas nas cidades e o calor torturante da altitude tinham um efeito negativo que eu tentava contrariar, antecipando um final bucólico para esta odisseia, nas serras do Quirguistão, em Aslam, com cascatas e jovens brancas e graciosas, tomando banho nuas nas águas geladas das montanhas em Aslam, nas mágicas florestas da Ásia Central.
Substituíram nesta área as duas únicas estradas existentes (uma em direcção a Kashi e outra para Golmud e Tibet) por autoestradas, sem maneira nem forma de circular sem passar por camaras de vigilância, muitas vistorias policiais e portagens colocadas estrategicamente para controlar toda uma vasta região que deseja tão só e simplesmente a independência da DURA tirania Chinesa.
Acerquei-me da pior maneira possível do lago Quinghai, tinha percorrido uma distância três vezes superior à necessária para o avistar, mas foi uma felicidade grande ao ver esta enorme mancha azul-clara que eu pensava ser água doce.
Mais uma vez o meu provisional “anjo-da-guarda” apareceu: era o mesmo, sempre presente chinês gorduchinho e afável do comboio em Xining, apontou o “pin” colocado por ele próprio, alguns dias antes, nessa mesma t-shirt; era fácil não me separar dela, pois tinha comigo apenas duas camisolas, a de mangas curtas que tinha vestida e outra de mangas compridas para ocasiões mais formais, jantar num restaurante, por exemplo.
Impressionou-me a avistamento de iaques pastando nas margens deste lago que parecia mar, nómadas como os seus guardiões, em coloridas tendas, de rosto e corpo completamente tapados devido a intensidade dos raios solares, alguns espreitando no fundo dos panos e todos eles vindos dos confins dos séculos continuavam iguais a si próprios.
Vi peregrinos mandando ao ar papeis com cavalinhos de vento
impressos, monges que se deliciavam quando me sentava gesticulando, no meio deles, tive encontros casuais com estrelas, dormindo na erva de vida breve mas depois vinham as angústias dos espaços preenchidos de nada
e a incerteza dos percursos sem fim, tive a sensação de voar nas descidas dos planaltos de estepe até ao inicio dos desertos cinza ou de fazer parte das admiráveis pinturas chinesas quando as árvores nas estradas tocavam o chão e os pavões se passeavam pelas tradicionais aldeias.
Hexiang, a cidade das bicicletas e encruzilhada das estradas, 109 para o Tibete 315, para ocidente.
A segunda escolha revelou-se depois errada apesar de ser a cidade mais próxima e onde poderia ter acesso a dinheiro corrente dado que o único banco além dos serviços postais Chineses desta localidade me negarem trocar ou levantar em ATM.
Averiguei no multibanco, precisava de seis dígitos em lugar dos normais quatro, do código secreto, na parede dos bancos em letras vistosas mostravam os cambio do euro e do dólar, mas era proibido a estrangeiros, apenas no banco da China era permitido e em mais umas poucas entidades certificados e vigiados pelo estado.
Avistei no outro lado da ruas, três transeuntes, um rapaz e duas jovens, pareciam estrangeiros pela roupa lavada e por usarem mochilas, falavam inglês, vinham de peregrinação desde Lhasa e foi com eles que voltei a tentar cambiar euros, foi a mesma resposta,- não temos autorização para cambiar moeda a estrangeiros.
Comecei a ficar preocupado, disseram-me que na próxima cidade a cerca de 80/100 km pela estrada 315 haveria um banco com ATM onde poderia fazer o cambio ou levantamento de yuanes em ATM.
Este acolhedor grupo de peregrinos de Lhasa aliviou-me da fome com mais uma refeição gratuita num simpático restaurante, depois continuei a minha viagem na direção que me tinham indicado como sendo a mais próxima para conseguir “cash”.
Jamais teria seguido pelo caminho da direita, não fosse esta emergência, mas como algures esses dois percursos entroncavam numa única via em direção a Kashi, pelo coração do deserto do Taklamakan, foi por esta que continuei rumo ao final abrupto da viagem.
Halihatu ou Haixi eram as localidades a alcançar nessa tarde na região autónoma de “wulan country”, a questão era a de vencer 100 km numa tarde que já ia avançada, percorri uma maldita estrada 315 com “up grade” de autoestrada,
perguntei na portagem monumental, se poderia passar de bicicleta, falávamos por gestos, como era habitual assim como era a já banalizada foto, que os portageiros e polícias de serviço lhes apeteceu tirar comigo, vinham um por um, perfilavam-se em pose e com o tradicional “V” de Vitória feito com os dedos indicador e médio espetados , triunfo o deles, fracasso o meu.
Ainda não percebo o significado deste gesto mas tornou-se trivial um pouco por todo o mundo, não creio que neste pais, tenha alguma simbologia próxima ou longínqua ao filme homólogo. ou mesmo com um outro gesto de um só dedo, neste caso o médio bem levantado, perante os agressivos e importunos apitos sem me parecer que conhecessem por aqui o alcance deste gesto.
Não me parecia muito mundano o sitio onde decidi ficar, numa placa castanha dizia : Dulan Temple
Eram seis da tarde e ameaçava chover, por essa razão fui perguntar por refúgio e uma refeição quente, na pequena subida em terra batida que dava diretamente acesso ao mosteiro fui abordado por um individuo que eu julgava ser um monge sem a tradicional veste bordeaux e amarela.
Perguntei por gestos se podia dormir no mosteiro, questionou se possuía algum dinheiro e quanto ao que eu respondi que tinha muito pouco, apontou que deveria seguir a estrada e escreveu no chão a distancia até á cidade mais próxima, mostrei-lhe apontando o céu, que ia chover e não poderia continuar
Pousou um braço sobre os meus ombros, parecia dada e sincera a ajuda e vieram-me as lágrimas aos olhos nesse momento.
Encaminhou-me para a entrada única do mosteiro onde se podia ler “POLICE” e mudando de semblante inesperadamente, mostrou que queria a minha identificação, apresentou-me um pequeno cartão, com uma estrela vermelha num canto, talvez revelando o seu estatuto na nomenclatura do estado.
Ficou de mão estendida numa atitude agressiva, olhando-me nos olhos e esperando que lhe apresentasse o passaporte.
Revistou-me a mim e a toda a bagagem, entretanto comecei a ser rodeado de mais autoridades. todos sem fardamento, principiou um, mais jovem por usar o tradutor do telemóvel, convidou-me amavelmente para visitar o mosteiro enquanto ia fazendo perguntas, estranhamente não ultrapassámos as primeiras escadarias do templo, fiz algumas fotos deles que depois foram apagadas assim como todas, onde figuravam militares, fotos do Dalai -Lama em quadros de parede obtidas noutros mosteiros ou material bélico e estranhas “ambulâncias” (com o sinal da cruz vermelha) com canhões de água no topo, que circulavam nas estradas a caminho de Xinjiang.
Olhei as queimaduras profundas nos braços e nuca de alguns monges, pareciam feitas com tições ou cigarros acesos, fiz gestualmente um reparo, mas não obtive explicação, eles depressa se cobriram, pareceu-me ver medo nos seu olhos provavelmente devido a minha presença.
Não obtive qualquer visita guiada, quando voltei ao austero gabinete da esquadra, mandaram sentar-me, perguntaram várias vezes se estava sozinho, se tinha fome (nunca trouxeram comida tal como o povo Chinês) e o que fazia ali…sempre com grandes gestos e uma inquietação que eu não compreendi a razão, como se fosse algum convidado inoportuno, pareciam não saber o que fazer comigo.
Examinaram o visto cuidadosamente talvez julgando tratar-se de falsificação.
Começou a chover e foi sob chuva, com muitos relâmpagos que me colocaram num carro, pareceu-me um “Lexus” castanho, num modelo diferente dos europeus, sem matricula.
Saímos para o ATM na cidade, a fim de levantar algum dinheiro, tive medo ao usar o cartão rodeado de tantos agentes (possivelmente da polícia) mas foi um alívio ter acesso a divisas correntes, 
No regresso detivemo-nos numa esquadra, aí confirmei serem polícias sem uniforme, falaram durante uns minutos enquanto me olhavam pelo canto dos olhos e perguntei em inglês :
-“Am I arrested ?”
Responderam com o tradutor do telemóvel
-“not yet !”
Escreveu que tinham vindo confirmar o meu visto mas um relâmpago tinha caído diretamente em cima do computador da esquadra
Por fim escreveu o jovem polícia no telemóvel tentando ser simpático:
-“you’re good !”
Não entendi se teria havido engano na tradução, ou queria transmitir que eu era boa pessoa, com bom carácter ou apenas um homem de coragem, audácia que me faltou pouco depois.
Voltámos ao mosteiro onde o porção de polícias tinha aumentado substancialmente, estavam na pequena sala cerca de doze pessoas entre fardados e não fardados, isso dividiu-me.
-sentir-me-ia apavorado ou se alguém finalmente havia reconhecido da minha importância.-
As atitudes tinham-se tornado mais agressivas, por cada tentativa minha para me erguer da cadeira colocada no meio desta chusma de gente era empurrado pelos ombros e reprimido, obrigado a ceder perante a violência visível nos rostos destes homens, encostavam os olhos aos meus numa postura de “posso e mando”.
Abriram sem pedir autorização a mochila vermelha onde transportava todos os meus bens assim como o saco cama que examinaram cuidadosamente procurando algo que estivesse escondido, pegaram na maquina fotográfica tendo eu descoberto posteriormente que haviam apagado algumas das fotos tiradas a porta do duvidoso “mosteiro” e a veículos militares que tinha visto pelo caminho e me chamaram a atenção por serem veículos humanitários ainda com o símbolo da cruz vermelha ( não o crescente vermelho como na restante Ásia )transformados em carros de combate a manifestações e tumultos.
De novo as mesmas perguntas, se estava sozinho etc, nesse momento entra uma jovem que me disse em inglês- não ser bem vindo em Xinjiang,
– Iria ser transportado, para minha segurança para um “hotel de turistas”,
ás minhas custas e no dia seguinte iria ser posto num autocarro para ser extraído (foi essa a palavra usada) desta província.
Insurgi-me com vigor e levantei-me e ergui a voz dizendo:
-tenho autorização oficial, dada pela embaixada em Lisboa para atravessar este território, o meu voo está reservado em Bishkek no Kirguistão, esta é a única via de acesso da China ao Quirguistão.
Não serviu de nada e só piorou a minha delicada posição, houve alguns berros que não entendi, nem a tradutora lhe apeteceu devolver-me o significado
Disse-me simplesmente:
“-Aqui governamos nós”
“-podes ir para o Tibete mas não te é permitido continuar nesta estrada em direção a Kashi”
Sabendo eu da dificuldade de passar sozinho, sem fazer parte duma viagem organizada com “guia oficial” para o Tibete, restava-me voltar ao ponto de partida, a Xi’an….
Mas os imprevistos não acabavam aqui…
(O regresso)
Chovia sem cessar quando parti do mosteiro de Dulan, cerca das 23 horas, no carro da polícia, devidamente identificado e com matrícula, acompanhavam-me a tradutora e um jovem polícia fardado com afinco, ainda se notavam os vincos da goma na farda cinzenta.
Encetei uma conversa casual com a tradutora, esta fingiu-se pretensamente indisposta, talvez para não dar azo a más interpretações da autoridade que nos acompanhava ou por não querer falar com desconhecidos, remetendo-se ao silêncio…
O hotel em Wulan, onde obrigatoriamente dormiria essa noite tresandava a novo e parecia de outra dimensão, sofás imaculadamente brancos de nunca usados, assim como o quarto jamais utilizado, perfeitamente intacto, assim era o Inglês para o pessoal do hotel dito “turístico”.
Pediram através da tradutora o meu passaporte e o equivalente a trinta e cinco euros, pagos antecipadamente, mais uma caução do mesmo montante a qual recusei pagar, afinal era quase todo o dinheiro que tinha retirado da caixa automática, com a ajuda dos primeiros agentes de segurança, pagava caução onde era forçado a ser hospede, a rececionista olhou para o delegado da autoridade e bastou um leve aceno de cabeça afirmativo do jovem polícia para esta ignorar o absurdo deposito, ficando apenas com o salvo-conduto.
O quarto com duas camas imensas almofadadas na cabeceira em vermelho Maoísta e toda a decoração do quarto lembrava um decadente bordel.
Sentia-me perdido nos confins da China e não ousei implorar que ligassem a água quente, teimava em assomar na torneira uma gota de água, insuficiente mesmo para uma lavagem de gato.
Abri devagar uma fresta da porta para confirmar o que supunha, a subtil presença do guarda sentado num dos sofá brancos do átrio, o quarto posicionava-se num corredor de fácil observação para o “hall”, sem outra saída que não fosse rente à minha previdente escolta, a qual achou por bem instalar-me de manhã cedo no lugar “VIP” do velho autocarro, atrás do motorista e após uma curta troca de palavras com a revisora.
Paradoxalmente sentia-me aliviado perante a incógnita que representava a travessia do deserto do Taklamagan, por um lado desejava atravessá-lo mas por outro receava-o sem ser capaz por “leitmotif” de desistir
De regresso a Huangyuan, cidade que tinha visitado dias antes, comodamente sentado no autocarro avistei por uma última vez o suposto “Mosteiro de Dulan,” mirei os gestos e rostos dos passageiros e vi que nenhum descobrira a cabeça ou balbuciara os “Mantras” como estava habituado a presenciar em passagem por outros locais sagrados, admirei-me desta atitude por parte dum povo tão devoto ao Budismo tradicional.
Encontrava-me perto da fronteira Norte do Tibete, no altiplano de feição Gelugpa, (tradicionalmente conhecidos por chapéus amarelos) próximo das comunidades muçulmanas “autónomas “de Uygur’s, do ancestral Turquestão Oriental, dos focos de rebelião, dos separatismos e da “Primavera Árabe (à chinesa) ”, à qual a “Grande Muralha” não escapava, ainda que as notícias não transgredissem o “Status Quo” imposto pela asfixiante ditadura, que aos olhos dos governos ocidentais parecia mais cor-de-rosa do que encarnado vivo, mais capitalista; a prática USA já conseguia vender hamburgers e Starbucks de Beijing a Shangai.
Em HuangYuan resolvi mudar de transporte e usar o comboio, foi uma tarefa espinhosa numa cidade em obras, como quase todas na China, não me conseguia fazer entender imitando os sons do comboio típico, o qual esta China montanhosa nunca conhecera, passaram a época do fabuloso furgão “Tch-Tch-U-uuuuu-pouca-terra-pouca-terra” para as locomotivas elétricas e modernas, consegui finalmente que um taxista entendesse a minha linguagem gestual e colocasse a bicicleta, meio dentro, meio fora do porta bagagens, no minúsculo táxi amarelo.
Voltei ao mesmo dilema na caixa do banco, esta não aceitava os meus quatro dígitos, no interior da instituição financeira não cambiavam Dólares ou Euros e era difícil mesmo mostrando o referido cartão, fazer entender uma pretensão tão simples como era encontrar o “bank of China” a palavra Bank não funcionava e China também não.
Os Yuans eram em quantia suficiente para comprar o bilhete de comboio para regressar a Xi’an e a incerteza financeira e logística aumentava não tinha forma de regressar , o meu retorno era pela antiga Republica Russa do Quirguistão, cada dia mais e mais distante,
Dentro, a grande gare estava repleta de militares que iam e vinham do Tibete, era o centro das atenções, uma jovem próximo demonstrou por sinais que iria na mesma carruagem e na mesma direção, como tal fiquei descansado.
Surgiu o meu perpétuo acompanhante, aquele que me havia agraciado com um crachá na camisola suja, havia duas semanas, tinha sempre aparecido como“do ar”, junto ao Quinghai Lake e na vila de Heimaha Exiang, onde me interpelou, de novo agora, na gare, mostrou-se ainda mais amigável, abraçou-me entusiasticamente e perguntou (pareceu fingir não saber) -porque estava regressando a Beijin, expliquei-lhe apesar de desnecessário, vi fechar-se-lhe o rosto assim que me referi à hostilidade das autoridades, demonstrava que não lhe interessavam as minhas desventuras.
Entretanto aproximou-se um sujeito magro, com cerca da mesma idade, afirmou pertencer à “Geographic Society of China”, mostrou-me uma identificação qualquer, logicamente escrita em Chinês e pareceu interessado na minha viagem, tirámos uma foto de grupo, pediu amavelmente para observar no meu Visa se haveria limitações de acesso a Xinjiang ou a qualquer outra província da China, disse não ver nenhuma.
Ultrapassado o tempo previsto para embarcar, perguntei apontando o relógio, à moça que anteriormente tinha afiançado ir na mesma direção, mostrei-lhe o bilhete, esta pediu-me desculpa e mostrou-se pesarosa pois tinha-me induzido em erro e eu havia perdido o comboio.
Por instantes entrei em pânico, sem dinheiro, nem para comer e sem transporte afigurava-se o pior, felizmente trocaram o acesso na estação tendo efetuado a viagem de quase 20 horas de regresso a Xi’an, sem qualquer alimento.
Nesta ultima cidade aumentava mais a minha angústia na dúvida de conseguir regressar, os muros não mais me pareciam históricos e belos, a cidade transfigurara-se numa prisão…
(continua)

Jorge Santos (Namastibet)

Sem estar, s’tou …




Sem estar estou,
Eis quanto e comum,
Eu sou ao ponto de ser
Peculiar em mim o ridículo, 
Sem estar, estou apenas
Cansado de estar cansado,
Sorrindo sem estar contente,
Sem estar s’tou noutro lado
Diferente e igual, sem estar
Me vou sentando entre gente,
Sinto-me pensar sem querer,
Perdido sem me perder, a ideia
De me perder é um desejo,
Um compromisso que assumo,
Tal como sonho o espaço,
Sem o ver sem i’estar, sem o ter,
Como quem conheço desd’início,
Apenas plo sorriso, 
Que podia ser d’alegria ou não ser,
Afinal que sorrir’alma tem,
Apenas cansaço eterno,
Minha ilusão terrena,
Nem outra coisa é preciosa
Mais pra mim, qu’esse alguém
Nesta ausência total de gente,
Eis quanto e comum
Eu sou neste triste circo,
Que tão pouco vida ou fera tem,
Procurando o que não encontro,
Sonhando o que não existe,
Sorrindo sem vontade a tud’isto,
E a quem está cerca sem estar
Perto …

Não sei se crer na sombra ou no luar …





Não sei se crer na sombra ou no luar,
Sendo isso verdade e eu Moby Dick
Não sei se crer na sombra ou no luar
Da noite escura, no monstro que
que pertence a outros e a mim mais que todos,
Pois isso são o que são os sonhos,
Dando sobre o mar a impressão
De serem monstros marinhos,
Negros quanto os medonhos rochedos,
Sendo isso verdade e eu Moby Dick
Do género dos demónios que há, e eu penso
Se será verdade o que sinto, Moby Dick eu,
Sombra do luar, segredo obscuro guarda o mar
De mim, marinheiro sem barco, delfim eu,
Não sei se crer na sombra ou no luar,
Cansado de ser espuma, ponho-me a sonhar
Ser isso verdade e eu Moby Dick,
Não sei se crer mais no mistério que no mar
Inteiro, sendo nele que vejo o céu descer
E o horizonte lunar quieto… cedo
Desperto eu, consciente que ele me leva p’la mão,
Não sei se crer na sombra ou no lugar
Onde me acrescento ao medo,
Sendo Moby Dick eu,
Isso são o que distam sonhos meus,
À inquietações de ser, que me dói mais hoje
E que antes nunca .

I’nda ontem…






I’nda ontem…
I’nda ontem era em azul o tom das tuas íris
E imensa a solidão dos teus dias/meses, dirias
Inúteis os malmequeres e os campos verdes
Ou o regresso das estações q’inda ontem eram
Certas, azuis e bege como os planetas que vias
Luzindo, Sírius Pólux Arcturus, em torno
De ti paisagem, ontem azul hoje bocados lembram
A natureza que não fala que não tenho, pensar
Não pertence a ninguém nem a mim mesmo,
Natureza somos todos, cremos na passagem,
I’nda ontem pensava assim das coisas que digo
Como se faltasse dizer ainda alguma coisa,
Interpretar os sentimentos, ter opinião capaz
De governar uma sociedade ou tornar lúcido o instinto,
I’nda ontem era em azul o tom das tuas íris.
A solidão tem dias tal como a alma tem figura,
A gente nega o que são vultos negros no chão,
Por serem negros, porque o são, sombra é ruído,
Regressa com as estações do ano ou uma roda partida,
O barulho do sistema solar sem freio,
Luzindo, Sírius Pólux Arcturus, Betelgeuse,
Cephei, em torno de mim paisagens de quanto
O deserto me faz chorar e se parece comigo
Até ao mais ínfimo grão de areia,
Assim os malmequeres nos campos verdes, 
Inúteis ao meu ver …

Falar não tenho,






Falar não tenho,
Sou adiantado em relação às horas,
Acordo ainda não vendo ninguém,
Passam todos por mim aquando deito,
A dor nos outros em mim é delito,
Não sigo caminhos que tenham sido
Pisados, nem peço pra ser ouvido, 
Pois ninguém ainda me ouviu hoje,
No fundo não sou semelhante a Deus,
Venho adiantando aos poucos desde
Cedo, como se pertencesse a outro
Universo e até o pensar eu antecipo,
Assim não falo, sonho, falar não tenho,
Assim não me demoro nem me engano
Em relação ao tempo, no falar nem tanto …

Dizei que rio …








Dizei que rio, 
Direi que trist’ando,
Dizei que existo,
Direi que me não ouço,
Dizei me perco,
Direi m’encontro,
Que manso me fico
Entre o parecer feliz
E o chorando a fio
A dor que não tenho,
Vivo da tristeza alheia,
Que nada vale “se-calhar”,
Dizei que rio,
Sorrirei “até-mais-não”,
Mesmo que soe a falso,
Os olhos não têm tacto,
Nem os ouvidos boca,
Escondo as mãos demais,
Não deixando os dedos,
Denunciarem o que penso,
Ou os joelhos saberem,
Que me perdi
No campo,
Direi que existo
Nas flores do mato,
Caso lembre,
Que das dores esqueci já,
A floresta é dentro de mim e ela
P’lo tacto diz-me que sim
Tudo quanto desejo é lá,
Pra isso existo, mas apenas
Do lado de cá…

Invejo aquele que nasce e não morre, o Tejo ...








Tudo o que sorri me alegra
O rio, sobretudo o céu azul
Um barco, o embarque no
Cacilheiro, Porto Brandão

Cacilhas, ao raiar do dia
O Barreiro, parte de mim,
Ou o que eu mesmo fui.
Tenho no rio a quietude

E a surpresa se se pode
Chamar assim à tristeza
Que me dá quando vejo
Aquele que nasce e corre,

Como nas veias sangue
Verde/azul-cinza, mar
Tagus, tudo que sorri
Me alegra,sobretudo

O rio ...



Jorge Santos (07/2017)
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Sem estar, s'tou ...








Sem es’tar es’tou,
Eis quanto e comum
Eu sou, ao ponto de ser
Peculiar em mim o ridículo, 
Sem estar estou, apenas
Cansado de estar cansado,
Sorrindo sem estar contente,
Sem estar s’tou noutro lado,
Diferente e igual, sem estar
Me vou sentando entre gente,
Sinto-me pensar sem querer,
Perdido sem me perder, a ideia
De me perder é um desejo,
Um compromisso que assumo,
Tal como sonho o espaço
Sem o ver, sem í’star, sem o ter
Como quem conheço desd’início,
Apenas plo sorriso 
Que podia ser d’alegria ou não ser,
Afinal que sorrir’alma tem,
Apenas cansaço eterno, 
Minha ilusão terrena, efémera,
Nem outra coisa é preciosa
Mais pra mim qu’esse alguém,
Nesta ausência total de gente,
Eis quanto e comum
Eu sou neste triste circo,
Que tão pouco vida ou fera tem,
Procurando o que não encontro
Sonhando o que não existe,
Sorrindo sem vontade a tud’isto
E a quem está cerca, sem estar,
Apenas um esquivo e disto, pretenso,
Ridículo, “snob”.
Eis quanto e comum
Eu sou, tal qual o ar tíbio
Em que, pra sempre me vou …

Licença pra entender






Peço licença pra entender
Peço licença pra entender
Mais nada senão a verdade,
Para ver o mundo exterior 
Como ele é e contemplar a 
Vista e menos eu próprio, 
Peço licença para fazer 
Uma catedral de um piso
Com o impulso do corpo,
Que seja com o único fim
De sentir por vez única
O púlpito, se sagrado ele é
E útil aos outros mais que
Aos céus, peço licença pra 
Ser eu a descrição do que 
Sonho e a sensação vivida, 
Peço licença pra saber
Quem ocupará o túmulo 
Depois de eu morrer,se
O êxito barato ou o fracasso
Da força do simples querer 
Já que agradar não me chega,
Não me faz cantar, apenas um abrir
E fechar exacto de maxilas 
Enquanto passo as mãos pelos 
Cabelos oleosos, rasos … 

Sinto saudade do que não sou,




Sinto saudade do que não sou,
O que vês é nada, esqueci
O pensar como fosse palha
Ao vento, como vês deixei

De ser outro pra tornar ao nada
Que sempre fui, esqueci por
Momentos que o nada basta
E sempre fui e serei o quanto

Sinto, saudade de quem sou,
Normalmente um nada eu todo,
Um todo-nada eu, nem mais
Nem menos que um morto-vivo

Sempre, o plural de nada ou
A definição nítida de um vazio qualquer,
Sem expressão, quanto à minha vista.
Lei ou justiça, quem dera não ser,

Nem formar sombra na rua,
Em redor do rosto banal, estúpido
Embrulho de um insatisfeito,
Sinto saudade da realidade

Construída a brincar, do brilhar
Dos pastos lá fora quando há lua,
Para quê pensar se a forma é humana
A que o espelho tem, vulgar

Quanto a justiça e a lei, importância
Nenhuma, pois ainda não sou
Ideia absoluta baseada no que creio
Ser, sou a noção que alguém teve d'mim

Outrora e antes e em mim mora rente,
E eu esse sou, sinto.










Jorge Santos (06/2017)
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O vento anuncia-se pelo ruído ...




O vento anuncia-se pelo ruído,


Do vale até ao monte o caminho é curto
Para o vento norte, o rugido é grosso e penso
No silêncio e o que é não tê-lo face ao ruído
Todo do mundo, ele se reproduz como rato

E peste, inumano, pano de fundo, boca de 
Sena, do vale até ao monte foge a razão
Da gente voando, e o trote do vento é a morte
Cavalgando, o meu não ouvido percebe o rugido,

Suspeito ser o suspiro derradeiro do horror
Do vale ao monte desespero e morte,
Luto e guerra, fez-se escuro no meu reino,
Deixei de ser rei e em pedaços voo, 

O vento anuncia-se pelo ruído arrancando
Folhas e ramadas, qual juízo final do mundo,
Balouça a minh'alma cadenciada, "a monte" ...


Jorge Santos (05/2017)
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Gostei de preencher de sonhos, instantes





Gostei de encher de sonhos pequenas nações
E o que atrás eram pombas dormindo apenas,
Deixei um tear de instantes, paixões do que entre
Mim e elas há ou houve e nos pacifica de veludo,

Gostei de encher de sonhos os que conheço,
Indivíduos que lembram sem querer, pombos.
Imito as próprias vozes deles todos a falar,
Depois talvez eu endoideça, há um sexto sentido

Que me diz não serem pombas dormindo em 
Camas de veludo, mutantes doutros mundos
Que não este de pequenas nações, calmas pombas,
Pensar eu que tudo é assim, espécie de sonho

Enchendo sonhos e outras nações pequenas, 
Imaginações e paisagens suspensas, suspeitas,
Mar que seja de penas, tear d'aves feitas,
Nem sei do que estou falando, veludo e dia.





Jorge Santos (04/2017)
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Reis, princesas e infantes



 




Reis, princesas e infantes



Foge de mim um sonho
Que é ter mando e ser rei
Dos anfíbios e das charcas,
Mas a chuva só cai longe

Os barcos não me levam
Onde há sapais e charcos,
O meu grande desejo é
Escutar de noite e sempre

Infantas que foram agora
Sapas e eu rei das poças
Nem, quanto mais ouvi-los
Coaxar às "noivas-infantas"

Pedindo beijos nas bochechas
Gordas e verdes, ranhosas
Como sapos as têm, tolos
Anfíbios das poças de lodo

E eu nem rei nem bote
Onde nem sapais há ou charcas,
Foge de mim o sonho,
Que é ter mando ou sorte

De Reis, princesas, infantes …


















Jorge Santos (04/2017)









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Valham-me as palavras boas ...





Valham-me as palavras boas,
E tudo que haja a devolver
Seja composto do falar,
Natural tanto como o dia

Ao nascer e a hora que foi,
Valham-me as palavras,
As maduras e as outras
Azuis da cor dos beiços 

Que trago neste lugar,
Que pra mim é a alma
E a devolvo porque real
Existe e o falar é vão e

Compósito demais, valham-
-me as palavras e o dever
De pôr o coração à frente
Das costas quando digo:

-Valham-me as palavras
Em tudo que haja a devolver
Por mais pesado ou leves
Tanto quanto folhas mortas,

Cabelos de prata, horas que fui
Real, postiça a ilusão, inútil sou
Eu só, valham-me palavras, 
As más...as doces e as boas.




Jorge Santos (04/2017)
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Não confies na força das tuas asas, confia no ar que sob elas passa ...






Não confies na força das tuas asas,
Mas no movimento que as traz detrás 
Pra frente e na vontade que faz voar
E ninguém tira ou pode tirar, confia no ar

Que as sustenta no vacuo e onde ir, no prazer
De voar e no uso do saber que é de
Ninguém e o princípio de tudo que é o voo,
Que importam as sensações se a vontade

É tudo e o limite é um céu e a forma
De o olhar é sobretudo sentindo círculos
Circunferências e esferas como um artista
Sem conclusão, acordado à noite agradecido

Por ser humano em óxidos e enxofre, 
Não confies na força das tuas asas incorpora-as
Nas mãos por ainda não ter passado
O teu futuro de libélula adormecida,

Oxalá os meus olhos se colem à substancia
De que é feito o cosmos, e ás asas desses anjos
Complexos que me fazem aqui estar e ser
Até tão tarde, viciado em ar e no movimento deste ...


Jorge Santos (03/2017)
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Em silêncio ...









Em silêncio as guerras,
Os navios sem velas
E o mar vencido nas guelras
Dos peixes, a tristeza também

De não ter o mar imenso 
Na imaginação e escrever
Com ela em guerra,
Como ela em mim, 

Em silêncio as guerras
Mas não em mim, as ilhas
Por certo, distancio-me delas
Com silêncios plo'meio,

Meu barco vazio nem tem velas,
Os ruídos são dos nós duros
Dos meus dedos dez,
Na madeira do velame 

Navegando em vão,
Em silencio as guerras,
E o trovão que esta alma
Nega ser,

Navio sem vela,
Barca de lenho e eu sem arder,
Quanto mais escritor
Do que azul é, eu sem ouro 

Com ele enterrado algures
Como qualquer outra coisa,
O sagrado ou um tesouro, 
Desses com brilho de fumo,

Efémero e termo...




Jorge Santos (03/2017)
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Minh'alma não tem uso pra mim,





Minh'alma não tem uso pra mim,

Minh'alma não tem pra mim uso,
"Cohabito" um ser sem ser nem alma
No lugar onde eu pensava haver
E ter toda'dor e todo o gozo d'amar,
Como tod'agente e todo'mundo,

Esta minha não tem o devido uso,
Sou o monstro que duvido alguém
Conheça, porque conhecendo-me eu
A mim, sou enganado pelo tacto e vista
Pois da fala, dessa nem falo, ouço 

Numa linguagem absurda, o canto,
Que lembra fraco o eco doutra Pessoa ...
Enfim diferente e a mim junta, próprio 
Delouco fragmentado, julgo-me inatural, 
Perdido na época das masmorras,

Assim é o meu sentir, o estranho é que
A vida flui atrás destes meus olhos vis, 
Iguais outros que vi no purgatório 
do diabo, inúteis, inútil o choro, 
Rio ou rimos em simultâneo, só pra saber 

Se sou mesmo eu ou se um outro 
Logro igual convive comigo,
Logo eu tenho de conviver com ele
Mais o que sinto sendo universal e uno, 
Eu próprio incomum tanto quanto o uso

Que faço à alma que tenho no centro
Do corpo que é o mundo ...




Jorge Santos (03/2017)
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Aos desígnios que inventei só porque sim ...





Cheiro de jasmim e cana cortada ou
Os desígnios que inventei só porque sim...

Num tempo em que as paisagens eram florestas
E virgens as videiras, o dom do sonho era comum
Com os demais, tal como os cheiro a jasmim e
Cana cortada, todavia era minha alma incompleta

Sem os desígnios que inventei só porque sim,
Marquês dos sonhos e de tudo o que não tem fim
Em mim próprio, estar perto de ter estrelas no colo,
Em vez de estilhaços e pedaços de cana bamboo,

Não me concedem o direito aos saberes todos
Da Terra, a mim tanto se-me-dá, esqueço e ponho
Os desígnios acima de tudo e da copa das florestas
Pra que o mundo me deixe a sorte certa de ser eu,

Crível quanto as plantas cortadas em viés e delta,
Marquês dos sonhos, catedrais que erigi, só em solo
Do que poderiam ter sido ruínas que ninguém conhece,
Impossível dormir sem a veleidade de ser feito de céu,

Deusas princesas brincando com minha alma
E eu dono dos jardins de “quanto-se-pensa-existe”,
Num tempo em que as paisagens eram florestas,
Deus deixou um espaço entre os ramos pra que o luar

Me revelasse o caminho, a vereda que sigo e me levará 
Ao que inventei, só porque quis chamar de desígnio
Ao que é natural em mim, sonhar tanto e tudo,
Desde que o mundo me deixe sonhar acordado.




Jorge Santos (03/2017)
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tradutor

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